Impenhorabilidade: bens que guarnecem o imóvel de família
Elaborado em 08/2002.
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Marco Aurélio Leite da Silva
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aAVersão para impressãoRecomende esse textoNota do artigo: VoteDesmarcarUma questão prática que costuma tocar no senso ético dos profissionais do Direito é a extensão do conceito de impenhorabilidade dos bens que guarnecem o imóvel de residência da família. Como se sabe, a Lei 8009/90 veio a proteger o chamado bem de família da afetação ao processo de execução pela penhora, bem como os bens que guarnecem a casa, exceptuando-se apenas, no rigor da lei, os veículos de transporte, os bens de natureza supérflua e os suntuosos. Tem-se aí, portanto, dois elementos valorativos culturais: o caráter supérfluo e a suntuosidade. No que pertine aos veículo, não maiores dificuldades em entender que a lei possibilita sua penhora, salvo é claro se for de uso profissional. Já quanto aos demais, é óbvia a dificuldade em estabelecer-se, com toda a objetividade que uma regra de tal porte certamente exige, conceitos unânimes do que seja supérfluo em uma casa de família, conquanto a suntuosidade seja bem mais fácil de caracterizar-se. Já se entendeu que um forno de microondas, por hipótese, não é um bem supérfluo, consoante julgado do STJ (RESP 299392 RS QUINTA TURMA 20/03/2001), a despeito de não ser nada comum uma residência que tenha nesse apetrecho um ente indispensável à sua sobrevivência. Também no mencionado aresto ficou expresso que, da mesma forma, o aparelho de ar condicionado tampouco poderia ser penhorado. A Corte Superior estendeu a regra protetiva da Lei 8009/90 também a coisas como aparelhos de som, vídeo-cassetes, microcomputadores e impressoras, só mesmo ficando à conta da penhora um piano, assim mesmo sob a ressalva de inexistir qualquer evidência de que o instrumento estaria sendo utilizado para fins de aprendizado (STJ RESP 198370 MG 16/11/2000). Decisões como essas geralmente ecoam no senso de satisfação das pessoas, dando sensação de segurança a tantos quantos compartilhem os receios de virem a ser executados, podendo assim desfrutar do sossego de terem suas residências a salvo da gana dos credores. Mas... seriam decisões realmente justas? É, no mínimo, de se perscrutar a vontade da lei sobre a extensão da impenhorabilidade estatuída. O tema não se exaure nos julgado já referidos, até porque o mesmo STJ proferiu também decisões que atenuam essa visão radical da impenhorabilidade. De fato, a Corte considerou válida a penhora de bens que guarnecem a residência da executada quando prescindíveis ao convívio familiar e à dignidade de seus membros (STJ RESP 248503 SP QUINTA TURMA 16/05/2000). Aqui, sim, temos uma interpretação consentânea à generalidade que deve informar todo comando legal. No entanto, é de se reconhecer, há efetiva prevalência do entendimento de que objetos como a secadora de roupa e a máquina de lavar louça, considerados como essenciais a habitabilidade condigna, não poderão ser afetados à execução (STJ RESP 120572 RS SEGUNDA TURMA 27/04/1999). Não parece razoável que uma secadora de roupa seja considerada elemento essencial à dignidade de uma família. Enfim, vemos a dificuldade, já referida, em conceituar-se suficientemente o que seja imprescindível ou não à dignidade da família. O já mencionado aparelho de vídeo-cassete surge como bem penhorável aqui e acolá (STJ RESP 162998 PR QUARTA TURMA 16/04/1998).
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Diante da situação estabelecida, mesmo em se tratando de corrente majoritária no STJ, merece ser repensado o caráter absoluto com que a impenhorabilidade dos bens que guarnecem o imóvel de família vem sendo tratada. Inescondível a componente social que norteia a norma, de modo que, analogamente ao tratamento jurídico dispensado a outras disciplinas igualmente inspiradas no senso social, somente deve haver rigor restritivo à efetivação da penhora diante de hipossuficiência econômica do executado. É o contrapeso necessário à busca da satisfação do débito, impedindo-se que o direito patrimonial, para ser observado, relegue ao ostracismo bens jurídicos muito superiores aos interesses econômicos em lide. Somente diante de hipossuficiência econômica legitima-se a proteção do devedor que, afinal de contas, é devedor. Que a família não sofra, como se diz popularmente, "na carne" o preço a ser pago. Mas nada justifica tomar a exceção como regra geral, até mesmo porque a Lei 8009/90 certamente não foi editada para afastar da execução indiscriminadamente os bens que existam em uma residência abundantemente. Uma família que possua um único imóvel e dele se sirva para a própria existência, mas que tenha em seu interior, digamos, três aparelhos de televisão, ou mais de um aparelho de som, não parece estar sob a proteção da lei em tudo o que exceda a condição de sobrevivência digna. É claro que o televisor, por exemplo, constitui um elemento de informação do cidadão, instruindo-o muitas vezes naqueles pontos em que falhou fragosamente o Poder Público. Todavia, a cidadania de todos da família não será afetada pela penhora de um dos aparelhos disponíveis da casa, cuja eventual perda acarretará, quando muito, uma diminuição do conforto original em contrapartida à satisfação do direito do credor. Entender-se ao contrafluxo cria a possibilidade do indivíduo conduzir-se de má-fé, internando na casa elementos que lá não manteria, por serem desnecessários, como eventuais acessórios de conforto em duplicidade. Não há justiça em considerar-se impenhoráveis, digamos, todos os três televisores de nossa hipotética família, relegando-se o credor a amargar duras penas para conseguir o pagamento de quanto lhe devam. Não se perca de vista que o devedor efetivamente deve, cabendo-lhe impugnar o crédito sempre que assim entender pertinente. O caráter pendular da matéria leva a decisões até mais rigorosas contra o devedor, como já ocorreu no TRF da quarta região: A proteção da LEI-8009 /90 é apenas para os bens que guarnecem a residência do devedor indispensáveis à habitabilidade mínima de sua família, bem como os necessários para a manutenção da dignidade humana. Prossegue o julgado: Televisores e aparelho de som escapam da protetora inspiração social da impenhorabilidade (TRIBUNAL - QUARTA REGIÃO AC RS SEGUNDA TURMA 10/10/1996).
O melhor critério em nossa opinião é o da hipossuficiência. Um bem que guarneça a casa de família poderá ou não ser tido como impenhorável de acordo com o caso concreto, conforme esse bem, no contexto daquela família, constitua ou não elemento de sobrevivência condigna e de cidadania. Um único televisor é impenhorável; dois, talvez; de três em diante, não cremos possam ser excluídos os excedentes da eventual penhora a ser realizada.
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